• Ardis da consciência
A sucessão dita o ritmo da humanidade. Tudo o que fazemos está de alguma forma relacionado ao futuro, quer estejamos pensando em nosso legado, filhos ou ambos. No modo de se governar, por muito tempo o poder foi sendo delegado de pai para filho, se concentrando sempre em mãos masculinas – mas isso é assunto pra outra discussão. O ponto em que desejo chegar está na importância da hereditariedade, no ato de se passar o bastão. A cria segue os passos de seus progenitores, a Lua herda o caminho do Sol, a escuridão sucede a luz ou, dependendo de sua perspectiva, a luz sucede a escuridão. Toda essa filosofia é só um emaranhado de bifurcações que desembocam na projeção atual da HBO. Nos últimos anos, Game of Thrones foi o carro-chefe da empresa, muito à frente de todos os seus outros produtos. Contudo, uma hora a série precisaria ser encerrada e uma lacuna se abriria. Westworld chegou então com vontade de preencher esse espaço vazio e ser o novo alvo de discussões acaloradas ao redor do globo. A artimanha poderia ter dado certo, se o projeto não se mostrasse tão confuso.
Sinopse
Era uma vez um lugar incrustado de liberdade. Travestido de Velho Oeste, o parque de diversões Westworld abriga simulacros humanos tão parecidos com seus espelhos de carne e osso que tornam a experiência no local extremamente real e palpável. Diferentes trajetórias podem ser enveredadas com múltiplas consequências, e a melhor parte é que essas consequências não são exatamente reais, considerando que as memórias de todos os robôs, ou anfitriões, são apagadas todas as vezes que eles morrem. Em teoria era tudo esplêndido, até que os habitantes do parque passam a alcançar a autoconsciência e se rebelam, com o assassinato de Robert Ford pelas mãos de Dolores Abernathy agindo como faísca. A partir dali, os administradores de Westworld precisam encontrar um jeito de corrigir a bagunça, Dolores e sua trupe buscam vingança, Bernard tenta se encontrar, o Homem de Preto procura um novo objetivo, e Maeve inicia sua saga rumo ao resgate da filha junto a seus (im)prováveis companheiros.
Crítica
Westworld é o tipo de obra que funcionaria perfeitamente como minissérie. O final da primeira temporada poderia tranquilamente ter sido a conclusão da série em si, deixando um gancho indefinido para histórias posteriores. Essa era a opção mais segura, pois a outra alternativa demandaria criatividade e originalidade em um patamar complicado de se alcançar, até porque as possíveis reviravoltas de uma segunda temporada seriam constantemente comparadas às ocorridas anteriormente.
A HBO resolveu correr o risco. Eu realmente fiquei instigado a saber o que aconteceria: os anfitriões invadiriam as cidades estadunidenses e tocariam o terror? Eles tentariam de alguma forma dominar os parques e torná-los seus territórios e de mais ninguém? Um leque muito grande de opções se espalhava no horizonte, e Westworld tentou agarrar o máximo possível. Alguns personagens escolheram a vingança como base, outros a esperança ou o conhecimento. Esse contraste ficou legal, mas não posso dizer o mesmo do desenvolvimento das temáticas. A vingança soou caricata e irreal, a esperança pareceu ingênua e o conhecimento vazio. Aqueles com mais potencial, Dolores e William, foram reduzidos a motivações repetitivas e desinteressantes, abrindo espaço para os coadjuvantes brilharem e se tornarem, de certa forma, protagonistas.
Um dos elementos mais marcantes da primeira temporada foi a linha do tempo caótica. A princípio, achei cansativa e difícil de acompanhar, mas o desfecho encaixou as peças e entregou um quadro de genialidade realmente impressionante. A questão é que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. A segunda temporada resolveu utilizar novamente o recurso de contar a trama em linhas do tempo distintas. Porém, se mostraram confusas e o final não entregou aquela perspicácia da temporada anterior. Antes, a narrativa bagunçada era um diferencial e fazia sentido naquele contexto. Agora, é forçadamente inserida no enredo para manter uma identidade que não precisava ser reduzida a voltas e mais voltas entre passado, presente e futuro. É um pretexto que não faz mais sentido.
Veredito
É impossível negar a qualidade estrutural da segunda temporada de Westworld. O talentoso elenco entrega verdade em suas interpretações, adicionando sal e tempero nos personagens que vivenciam. A fotografia é magnificamente inspirada, as paisagens, as cores e os enquadramentos. O material central da história é forte e apresenta bastante lenha pra queimar, mas a série tenta preservar uma identidade narrativa que não tem mais valia e acaba desviando a atenção do telespectador de uma forma negativa. A minha impressão foi de que o roteiro não sabia bem como fazer a trama andar e tentou colocar um estilo conceitual pra mascarar o enredo como esperto, quando na verdade acabou ficando um pouco chato. Caso isso se repita no futuro, vai ser difícil minimizar as falhas de novo. As qualidades da série ainda estão presentes e fazem-na valer a pena – além das questões técnicas, a ambientação, as coreografias e os estudos de personalidade são acertados; só não sei se na quantidade suficiente pra credenciar Westworld ao posto de sucessora oficial de Game of Thrones. A sensação que fica é a de um excelente aluno com boas notas, com cacife para fazer muito melhor. Nota final: 3,9/5.
>> Crítica da 1ª Temporada de Westworld
Nota: caso eu tenha usado algum termo desconhecido para vocês, meus queridos e queridas leitoras, não hesitem em acessar esse post aqui, ó: Glossário do Leleco
Nota nº 2: quer conhecer melhor a história do blog e os critérios utilizados? Seus problemas acabaram!! É fácil, só acessar esse link: Wiki do Leleco
Nota nº 3: bateu aquela curiosidade de saber qual exatamente é a nota das temporadas, sem arredondamentos? Se sim, dá uma olhada aqui nesse link. Se não, pode dar uma olhada também: Gabarito do Leleco
Nota nº 4: pra saber sobre quais séries e temporadas eu já fiz críticas no blog, é só clicar aqui: Guia do Leleco
~ OBSERVAÇÕES SPOILENTAS: NÃO LEIA A NÃO SER QUE JÁ TENHA VISTO A TEMPORADA INTEIRA. O AVISO ESTÁ DADO ~
- Argh, que porra foi aquela da Elsie estar viva? No começo, eu fiquei “uooou, ela ainda tá viva”. Depois daquela explicação pra lá de vaga, dizendo que o Bernard tinha deixado a moça lá sem mais nem menos, broxei bastante até entender que devia ser uma daquelas jogadas de narrativa, trazendo uma alucinação pra se comunicar com um personagem no meio de um caminho solitário. Não gosto muito desse subterfúgio, mas pelo menos faria sentido. O problema é que Elsie de fato tava viva, e a cereja do bolo foi que a Charlotte a matou, ou seja, por que ela foi “ressuscitada” em primeiro lugar?
- Eu tava verdadeiramente gostando de todo o rolê entre William e Delos, quando o anfitrião deste último tava sendo testado pra adquirir fidelidade ao original. O Bernard descobrindo que o Delos ainda tava lá, vivo, porém completamente louco, também foi muito massa. Preciso reconhecer.
- O núcleo de Maeve e companhia no Shogun World só não culminou no melhor episódio por causa do Akecheta. De qualquer forma, devo valorizar o que foi feito naquele capítulo. Os robôs de lá serem equivalentes a alguns de Westworld, o fato de que todos falam japonês em vez de inglês, a “clone” da Maeve arrancando a cabeça do cara a partir da boca, a semelhante da Clementine sendo assassinada, e por fim a Maeve controlando todo mundo com a força da mente.
- A Emily no The Raj protagonizou uma sequência muito boa, e gostei da tentativa dela de provocar alguma redenção no pai. Achei a backstory de ambos um pouco clichê, mas fiquei chocado quando o William a matou por achar que ela era uma anfitriã. Fiquei com raiva dele, confesso.
- Cá entre nós, o Akecheta fez mais em um episódio do que a Dolores na temporada inteira. Sobreviveu por dez anos no parque (e poderia ter sobrevivido mais), se sacrificou pra ver a antiga companheira e descobriu todo o segredo por trás daquele universo, foi atrás da verdade, liderou um imenso grupo apenas com a força de sua palavra e a consistência de suas ações, e ajudou a guiar todo um povo até um paraíso virtual. Big dick energy.
- Falando agora de coisa ruim, que chatice a epopeia da Dolores. Começou daora com toda sua ideia vingativa, a guerra junto aos soldados confederados, mas ficou só naquilo. É triste pensar que ela era uma das mais inteligentes e a que eu mais ansiava pra ver, mas acabou virando uma concha vazia. O suicídio do Teddy foi quase o ponto alto. As partes em que Dolores estava no “mundo real” com o Arnold, no entanto, me dão um alento de que é possível corrigi-la.
- Stubbs é um robô mesmo? Confere, produção?
- Não vou mentir, o Lee era legal e tudo mais, só que eu não me importei nem um pouco com sua morte; pelo contrário, acho até que veio tarde. É o tipo de personagem que deveria ter ficado só na primeira temporada (e possivelmente vou ser criticado por isso).
- Gostei muito da cena em que o Logan vê pela primeira vez os anfitriões, seria exatamente a minha reação. Ah, e gostei muito também da Angela se explodindo naquele laboratório, movimento poderoso.
- Que desculpinha ruim pra trazer de volta o Peter, hein? Mas ok, eu entendo. O que realmente me deixou feliz foi toda a artimanha do Bernard em bagunçar suas próprias memórias, matar a Dolores e construir uma anfitriã da Charlotte pra que ela se infiltrasse e depois matasse geral, acarretando em seu próprio assassinato. Agora nos resta saber quais foram as “almas salvas” pela Dolores na pele de Charlotte, e quem está na pele desta última agora.
- Ah, a Charlotte Dolores matando a Charlotte Charlotte foi o meme do Homem-Aranha olhando pro Homem-Aranha elevado ao quadrado.
- O que diabos foi aquele epílogo? O Homem de Preto é anfitrião ou não é? Aquilo é no futuro? Terceira temporada, resgate esse personagem que não morre nem com reza braba. Ele pode levar trocentos tiros, simplesmente não morre. Deve ter algum poder especial ou usa um colete monstruoso, são as únicas explicações plausíveis.
~ FIM DAS OBSERVAÇÕES SPOILENTAS. A PARTIR DAQUI PODE FICAR DE BOA SE VOCÊ AINDA NÃO VIU ~
+ Melhor personagem: Maeve Millay
Ela era uma das que eu menos gostava na primeira temporada, mas tanto ela quanto suas histórias foram o grande destaque da temporada, expondo uma Maeve bem mais sensível, natural e crível.
+ Melhor episódio: S02E08 (“Kiksuya”)
Possivelmente o melhor da série inteira. O episódio se distanciou totalmente da trama principal e ousou pra caramba ao dar seu enfoque a um personagem terciário. A tática deu certo, e com louvor.
+ Maior surpresa: Emily Grace
Acho que ela poderia ter sido melhor utilizada, mas deu um toque diferente ao ritmo da temporada, transformando arcos fracos em bons ou ao menos toleráveis.
+ Maior decepção: Dolores Abernathy
A grande protagonista da série sofreu com a Síndrome de Daenerys Targaryen™: pegar uma personagem feminina e tentar elevar seu nível de fodacidade ao infinito, sugando todas as fraquezas da pessoa e deixando-na com uma expressão eterna de “sou melhor que todos vocês”. A Dolores não precisava disso, tampouco Daenerys. E só pra constar, isso também acontece com personagens masculinos, os heróis vividos por Sylvester Stallone e afins que o digam.
+ Mais subestimado: Akecheta
De onde veio este cara e por que não foi aproveitado antes? O misterioso membro da Nação Fantasma se tornou um icônico rosto no parque de diversões mais sanguinário do mundo.
+ Pior personagem: Homem de Preto
Ele sempre foi melhor como William do que como Homem de Preto, mas todo o aspecto enigmático do anti-herói pulverizou-se e deu lugar a um obsessivo e enjoado vilão vestido de plot armor.
Ei, você! Tudo joia? Pois é, eu também tô bem. E já que agora temos intimidade, comenta aí o que cê achou da temporada. Opiniões são sempre bem-vindas, e é importante lembrar que nos comentários spoilers estão liberados. Se você não quiser vê-los, corre logo pra assistir e depois volte aqui, beleza?