• Longe de ser um produto
Eu já falei para vocês que eu adoro falar de filmes de grandes diretores. Devo ter falado isso no vídeo do outro filme do Hayao Miyazaki que eu trouxe. Hoje a gente vai revisitar e comentar sobre um dos filmes que marcou a minha vida, então vamos deixar de enrolação e falar de A Viagem de Chihiro.
A Viagem de Chihiro é uma daquelas experiências que quando você assiste quando pequeno, fica maravilhado com o mundo criado, a fantasia, os animais fofíssimos e marcantes que aquela viagem nos proporciona.
Já quando você fica mais velho e vai revisitar, você fica maravilhado pela viagem que o filme te proporciona sobre amadurecimento, desenvolvimento pessoal e como a Chihiro lida com as situações da vida adulta.
Posso falar que é um tanto quanto complicado eu olhar para A Viagem de Chihiro sem pensar na minha vida e em como esse filme me impactou.
Eu já falei sobre sair de Rondônia e vim morar em Goiás, longe dos pais e tudo mais no texto sobre Retratos Fantasmas. A questão é que, como um homem, minha mãe não tinha me preparado para cuidar de mim próprio ou da casa que eu moraria.
É claro, cozinhar e fazer uma ou outra coisa eu sabia. Mas sair de casa com 14 anos foi uma mudança muito brusca, assim como a Chihiro que perdeu seus pais logo no começo quando ela parecia ser bem apegada a eles e estava ancorada neles para essa viagem.
Trabalhar, estudar e tentar se encontrar nesse mundo, principalmente quando as coisas acontecem muito rápido, como na adolescência, é horrível. Você não sabe muito bem como fazer as coisas, não tem noção de como vai afetar a vida das outras pessoas e parece que cada movimentação de vida que fizer é a pior ou vai se tornar a pior na sua vida. Por isso que às vezes preferimos nos sentir invisíveis.
É genial como esse cara trabalha essas circunstâncias da vida e eu, que passei por tanta coisa, revisitando esse filme pela quarta ou quinta vez, sinto que não consegui entender 5% do todo.
Existem filmes que têm esse poder de te contar uma coisa. Daqui a cinco anos você volta achando que vai rever aquilo lá e acaba tomando uma pancada de outra forma, escuta outro comentário que o filme te propõe. Por isso que a ideia de “esse filme é bom porque eu veria de novo” não faz sentido para mim, é como se você fechasse a porta para algo diferente que possa vir e, se tratando de cinema, fechar a porta para o diferente é como se você não quisesse participar da melhor parte dele.
Outro debate que esse filme levanta pra mim está no fato da necessidade. Eu posso trazer, falando de cinema, que o filme está cheio dessas ditas “cenas desnecessárias”. Nós sabemos que o cinema, como arte, não tem necessidade de nada. O fato de que fomos treinados a esperar que uma cena leve a outra só mostra o quanto o estilo de Hollywood está impregnado em nós, nos deixando desconfortáveis o suficiente para não gostarmos de algo que fuja desse padrão.
Levantando o papo de que a arte é subjetiva, mas se tratando de uma peça de Hollywood, agora mais que nunca, até o lado artístico vem perdendo força em decorrência das inteligências artificiais, o que nos lembra que estamos falando de negócios e não da arte. Então se você quer tratar como negócios, faz sentido você querer que qualquer cena seja importante ou que aquela que não tenha seja cortada do filme. Só que aqui estamos falando de um desenho a mão, um argumento de um artista e de uma história de amadurecimento que tem muito de um país que vivia esse debate do seu passado estar sendo apagado pelo imperialismo norte americano no pós-guerra.
E é com isso que voltamos ao debate sobre identidade, principalmente naquele debate sobre se lembrar de quem você é e de onde veio, como eu falei lá no início.
Como animador japonês, Miyazaki não ignora os traços, a fluidez e muito menos a fantasia que são características do Japão. Outra coisa que ele não deixou de lado é o “vazio” ou o “MA”, que tanta gente descobriu e que tem um vídeo incrível do Max, do Entre Planos, falando sobre.
Como personagem, por mais que tenha sido tirado dela, Chihiro não esquece da sua missão de encontrar quem ela gosta, assim como vemos na primeira cena do filme. Ela não perde a essência de querer estar junto deles e de ajudar quem pode com seu trabalho ou seu jeito.
E eu, como crítico de cinema e como homem, não perco o que me foi ensinado de como posso ajudar e cuidar das pessoas que estão perto de mim, melhorando seus dias ou seus momentos todas as vezes que posso.
É claro que não sou mais aquele menino que não sabia cuidar de mim ou da minha casa, assim como a Chihiro não é aquela desajeitada e o próprio Miyazaki não é mais um diretor sem reconhecimento de Hollywood. Mudamos, mas buscamos deixar nossa essência conosco.
Acho que é por isso que A Viagem de Chihiro é um dos meus filmes favoritos de todos os tempos e por isso que vai continuar sendo por muitos e muitos anos ainda. Acho que o que eu vi aqui me ajudou a mudar e entender que eu posso ser eu mesmo. Esse filme é espetacular e isso é porque eu nem entrei para falar de técnica de animação ou trilha sonora. Isso seria como avaliar um produto e acho que A Viagem de Chihiro passa longe disso.
Ricardo Gomes
O Sharkboy que estuda Jornalismo e ama o cinema
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Este texto faz parte de um quadro de colaborações com outros redatores. O artigo não foi escrito pelo maravilhoso Luiz Felipe Mendes, dono do blog, e não necessariamente está alinhado às ideias dele.