• O preço das mentiras
Eu lembro direitinho da época em que Chernobyl estava lançando os seus episódios. Todo mundo frustrado com o fiasco de Game of Thrones, e esta minissérie aqui foi uma espécie de alento para os fãs de televisão. Como um deles, eu me senti impelido a assistir. Por algum motivo, não cheguei a ver. Os meses se passaram, a obra foi esquecida em meio a um mar cada vez mais cheio de conteúdo e eu também acabei a deixando de lado. Eis que, três anos depois, resolvi ver os cinco episódios, terminando a temporada inteira em dois dias. Agora, diante de um frio congelante de 10ºC, com meus dedos quase paralisados sob o ar gelado, começo a escrever um pitaco que eu deveria ter postado antes.
Sinopse
Chernobyl conta a história real do maior acidente nuclear de todos os tempos. Em uma usina na Ucrânia, o reator explode e bombeiros são chamados pra acabar com o incêndio. O que as despreparadas e desavisadas pessoas não sabiam era que havia um perigo silencioso bem mais grave: a radioatividade. Então, o professor Valery Legasov entra em ação para alertar a respeito da iminência de um desastre com potencial de destruir toda a Europa e, quiçá, o mundo. Embora seja constantemente minado pelas autoridades da União Soviética, Legasov precisa convencer o secretário Boris Shcherbina a evitar uma catástrofe internacional.
Crítica
HBO é HBO, né. Depois de tanto tempo vendo somente produções da Netflix, chega a ser bizarro assistir a algo da HBO. Tudo bem que eu vi poucas coisas da empresa na vida, e que a Netflix também possui séries de grande investimento. No entanto, tem algo na HBO que atualmente é imbatível. Dá pra notar isso logo de cara, assim que as primeiras cenas emergem na tela.
Em primeiro lugar, os diálogos. O roteiro de Chernobyl é muito bem escrito, e isso fica notável quando os personagens interagem entre si, ou até mesmo quando há algum tipo de monólogo. Mesmo se tratando de uma história com tantas repercussões, a minissérie jamais fica confusa. Isso poderia facilmente acontecer, principalmente quando a trama se concentrasse na parte mais técnica, contando como funciona uma fissão nuclear ou algo do gênero. No entanto, por meio de conversas bem estruturadas, a obra consegue ser didática sem ficar excessivamente expositiva.
Sobre a produção em geral, não há como utilizar outra palavra sem ser “impecável”. A fotografia, a reconstrução de cenários reais, a atenção aos detalhes, a trilha sonora e a direção de arte são simplesmente perfeitos. É uma configuração bruta, exatamente como se espera que tenha sido a Chernobyl daquela época. Além do mais, a série não atenua o horror da tragédia, apesar de se permitir ter algumas liberdades poéticas. De qualquer forma, é preciso lembrar que, por mais fiel à realidade que Chernobyl possa parecer, ela não é um documentário. Por esse motivo, utilizar alguns recursos que fogem um pouco do que realmente aconteceu não é apenas possível, como até recomendável em determinadas sequências.
O nível das atuações também chama a atenção. No começo, eu fiquei um pouco incomodado com o fato de todos os personagens falarem inglês. Essa britanicalização (provavelmente inventei essa palavra, mas ok) me deixa um pouco contrariado, porque abre mão de dar oportunidades a talentosos artistas ucranianos e russos. A gente pode não conhecer muitos, mas eles com certeza estão por aí. Pode parecer algo bobo, mas eu me coloquei no lugar dos caras. Se alguma grande produtora fizesse uma minissérie sobre, sei lá, a Guerra dos Canudos, eu não iria querer que Antônio Conselheiro falasse inglês. Pra piorar, Chernobyl se passa no período da Guerra Fria, o que torna a mudança de idioma ainda mais dolorosa.
Porém, esse incômodo foi sumindo à medida que os episódios foram passando. Isso porque todo o elenco está excelente. Jared Harris (Fringe) e Stellan Skarsgard (Duna) são os grandes destaques, mas alguns nomes de apoio também cumprem o seu papel de maneira competente. Emily Watson (Ondas do Destino), Jessie Buckley (A Filha Perdida) e Barry Keoghan (Eternos) são alguns dos exemplos. As duas primeiras têm mais espaço para trabalhar, enquanto o último não passa de um coadjuvante. Contudo, é importante notar como Chernobyl parece não se importar em alguns momentos com o calibre de seus atores. A série não precisa dar mais tempo de tela a eles do que o necessário. Essa estratégia se encaixa perfeitamente com o viés da obra.
Em somente cinco capítulos, Chernobyl é capaz de nos impressionar audiovisualmente, impactar com o seu enredo e nos fazer ter interesse pelo tema. Falando aqui em uma nota mais pessoal, eu não conhecia muita coisa do acidente nuclear antes de assistir à série. O que eu sabia era algo bem superficial. Depois de concluir a temporada, tive vontade de saber mais. E, no final das contas, esse é um dos principais objetivos de uma obra que se baseia em fatos: fazer com que os espectadores aproveitem a experiência, sem tomá-la como verdade absoluta, e se sintam instigados a ir mais à fundo.
Veredito
Chernobyl é um espetáculo devastador. Não é facil de assistir em alguns momentos, mas é mais difícil ainda parar. A história não enrola e sempre entrega algum tipo de significado narrativo, por mais deslocadas que certas tramas possam parecer. A fotografia, os detalhes, os figurinos e a reconstituição histórica são feitos sob muito cuidado e de forma extremamente criteriosa. É um exemplo claro de que, quando a HBO consegue estabelecer o equilíbrio entre roteiro, narrativa e produção, é difícil superar a plataforma. Não preciso nem dizer que vale a pena assistir, pois acho que ficou claro. É uma minissérie densa, mas definitivamente agregadora e impressionante. Nota final: 4,8/5.
Nota: caso eu tenha usado algum termo desconhecido para vocês, meus queridos e queridas leitoras, não hesitem em acessar esse post aqui, ó: Glossário do Leleco
Nota nº 2: quer conhecer melhor a história do blog e os critérios utilizados? Seus problemas acabaram!! É fácil, só acessar esse link: Wiki do Leleco
Nota nº 3: bateu aquela curiosidade de saber qual exatamente é a nota das temporadas, sem arredondamentos? Se sim, dá uma olhada aqui nesse link. Se não, pode dar uma olhada também: Gabarito do Leleco
Nota nº 4: pra saber sobre quais séries e temporadas eu já fiz críticas no blog, é só clicar aqui: Guia do Leleco
Nota nº 5: sabia que eu agora tenho um canal no YouTube? Não? Então corre lá pra ver, uai: Pitacos do Leleco
~ OBSERVAÇÕES SPOILENTAS: NÃO LEIA A NÃO SER QUE JÁ TENHA VISTO A TEMPORADA INTEIRA. O AVISO ESTÁ DADO ~
- Sim, eu sei que tecnicamente nada aqui é spoiler, até porque trata-se de uma história real que aconteceu há mais de 30 anos. Mesmo assim, decidi levantar alguns pontos nesta seção porque nem todo mundo conhece o que rolou em Chernobyl. Eu mesmo não sabia da maioria, então vamos comentar por aqui.
- Acho interessante que a série não transformou o Legasov em um ser humano incapaz de errar. Se não fosse a comunidade científica representada pela Ulana Khomyuk, o Legasov talvez não teria se dado conta de que os tanques ainda estavam com água, o que poderia gerar consequências apocalípticas. Ainda assim, Legasov possui incontáveis méritos, e eu não conseguia piscar durante o julgamento, quando o professor ficou explicando sobre as nuances do acidente nuclear. O seu suicídio é uma triste representação do que acontece quando a verdade ameaça o poder.
- Sobre o Shcherbina (toda hora eu tenho que pesquisar no Google como se escreve), achei espetacular a fala do Legasov a respeito dele, dizendo que sem querer o Governo Soviético enviou o único homem bom que tinham. Se não fosse por sua mente mais aberta do que a média, quantos mais teriam morrido pelos caprichos de um regime ditatorial?
- Cara, eu tenho uma opinião um pouco controversa a respeito da Lyudmilla Ignatenko. Não a pessoa real, mas sim a sua contraparte na minissérie. Eu entendo que os responsáveis falharam totalmente em não explicar o que exatamente estava acontecendo com seu marido, mas não foi por falta de aviso, né? Aquela profissional de saúde disse várias vezes pra Lyudmilla não tocar no marido, sobretudo se estivesse grávida. Obviamente a culpa maior é de quem não deu o alerta direito, mas faltou um pouco de bom senso também, pô. Quanto à pessoa real, aparentemente não a avisaram nem de que ela não podia tocar no marido, e não entendi porque a série mudou isso. Seria algo mais ou menos parecido com o acidente do Césio-137 em Goiânia, minha cidade.
- Bicho, que ódio daquele Anatoly. Beleza, o Governo Soviético foi o maior culpado pelo acidente nuclear de Chernobyl, sim. Porém, houve uma carga gigantesca de culpa por parte do Anatoly. É como se, guardadas as devidas proporções, ele estivesse em plena pandemia da Covid-19, pegasse o vírus, saísse espirrando em todo mundo, sem máscara, e depois tentasse colocar a culpa em quem se infectou. É, acho que a humanidade tende a repetir sempre os mesmos erros.
- Eu jamais seria capaz de abater cães e gatos, papo reto. É claro que era algo necessário e tudo mais, só que isso requer um estômago que eu provavelmente não teria. O trauma que isso deve ter gerado em muita gente… não consigo nem imaginar.
- Podemos todos concordar que os mineiros são as melhores pessoas da série, disso tenho certeza. Querem que eles participem de uma missão suicida numa usina nuclear? Beleza, mas eles sujarão o ministro do carvão no processo. Desejam que eles trabalhem no subsolo, sem nenhum ventilador? Ok, mas então trabalharão pelados.
- Mano, os três caras que foram lá na usina esvaziar os tanques são a perfeita definição de heróis. Mesmo não tendo a dimensão de que provavelmente morreriam em poucos dias, eles ainda assim foram lá e fizeram. Pra mim, essa é a definição de heroísmo, principalmente em um recorte da História no qual esse termo foi tão banalizado. Pra coroar, contra todas as chances, todos eles sobreviveram por anos a fio. O único que morreu, até então, foi em decorrência de um ataque cardíaco, sem qualquer relação com a radioatividade.
- Eu não tinha ideia de que a radiotividade destruía tanto o corpo humano, inclusive. Velho, o Akimov ficou SEM ROSTO. Não consigo nem imaginar o que isso significa, a série fez questão de não mostrar. E é triste pensar como os menos culpados tiveram os piores destinos. O Anatoly cumpriu só uns trabalhos forçados lá, mas pelo menos morreu não muitos anos depois.
- Será que a série exagerou um pouco no despreparo de todos os envolvidos, sejam cientistas, bombeiros ou funcionários? Tipo, ninguém usava nenhum tipo de máscara ou roupa de proteção? Não consigo entender como, há relativamente pouco tempo, a galera achava que radioatividade era um negócio tranquilo. Mas, como não vivi aquela época, não dá pra julgar totalmente. Mesmo assim, é horrível pensar que as pessoas constantemente mexem naquilo que não entendem. Isso me dá medo de que o próximo acidente nuclear não consiga ser contido. E o meu lado pessimista não deixa de pensar que, um dia, algo como o desastre de Chernobyl pode voltar a ocorrer. Espero estar errado.
~ FIM DAS OBSERVAÇÕES SPOILENTAS. A PARTIR DAQUI PODE FICAR DE BOA SE VOCÊ AINDA NÃO VIU ~
+ Melhor personagem: Valery Legasov
O protagonista tem muitas camadas. Ele é uma ótima representação de como os professores, cientistas e acadêmicos da nossa sociedade são comumente desvalorizados em prol do poder a qualquer custo, além de possuir claras falhas e evidentes qualidades como ser humano. Shcherbina também é muito bom, funcionando como uma balança entre o que uma autoridade é e o que ela deveria ser.
+ Melhor episódio: E05 (“Vichnaya Pamyat”)
Uma conclusão sem defeitos, com diálogos poderosos e um fechamento melancólico. Ressalto também o segundo episódio, responsável por me conquistar de vez. O primeiro capítulo é muito bom, não me entendam errado, mas Chernobyl só me fisgou de fato em sua sequência.
Ei, você! Tudo joia? Pois é, eu também tô bem. E já que agora temos intimidade, comenta aí o que cê achou da temporada. Opiniões são sempre bem-vindas, e é importante lembrar que nos comentários spoilers estão liberados. Se você não quiser vê-los, corre logo pra assistir e depois volte aqui, beleza?