• A canção do tordo
Jogos Vorazes surgiu no auge da minha adolescência. O primeiro livro, inclusive, marca o meu recorde de leitura mais rápida até hoje: devorei-o inteiro em menos de 24 horas. A saga foi uma parte marcante da minha vida, justamente quando os primeiros pensamentos críticos começaram a despontar. O terceiro filme, A Esperança: Parte 1, também foi relevante, mas de uma forma diferente. Em 2014, eu, meu pai e meus irmãos fomos ao cinema pra assistir ao filme na pré-estreia. No ingresso, dizia que a sessão era 00:00h de quinta-feira. Os quatro gênios foram pro shopping na quinta-feira à noite, sem entender na época que a sessão tinha sido na madrugada anterior. Quase uma década depois, resolvi revisitar a franquia, em preparação pro novo lançamento. A partir de agora, esteja avisado que o texto terá alguns spoilers leves e outros pesados, então leia por sua conta e risco.
Jogos Vorazes – Um tributo à morte
Sendo bem sincero, Jogos Vorazes pode ser considerado um clássico cult adolescente, assim como Crepúsculo. A história baseada nos livros de Suzanne Collins, no entanto, se diferencia por traçar alusões ao sistema socioeconômico mais presente na atualidade, construindo tramas políticas que se disfarçam de entretenimento barato.
A premissa é simples. Katniss Everdeen, a nossa heroína, vive em um país dividido por distritos, em que anualmente os jovens habitantes precisam se inscrever para o sorteio dos Jogos Vorazes. O evento é mortífero e fácil de entender: dois tributos são escolhidos em cada um dos 12 distritos, totalizando 24 participantes. Eles são jogados em uma arena e apenas um pode sobreviver. Essa abordagem se chama “battle royale”.
De um jeito um tanto quanto macabro, nós como leitores ou espectadores somos imediatamente fisgados pela ideia, porque ela se assimila a reality shows. É claro que a situação dos Jogos Vorazes é extrema, mas o objetivo final é o mesmo: o melhor vence, e todos os outros perdem. Aqui, no caso, eles perdem não só a competição, como também a própria vida. E, naturalmente, somos impelidos a torcer pela protagonista da saga, interpretada por Jennifer Lawrence.
Jogos Vorazes é marcante pro gênero de distopias, que abriu as portas para outras adaptações cinematográficas baseadas em livros, como Divergente e Maze Runner. Como filme em si, o primeiro capítulo desta franquia tem elementos meio indie, com um estilo de filmagem menos glamouroso e uma construção de mundo que flerta entre a simplicidade e o esbanjamento, capturando perfeitamente as vibrações da obra original. Afinal de contas, o mundo de Panem é uma constante contradição entre distritos dominados pela pobreza e uma Capital recheada de riquezas. E, aos poucos, a gente passa a perceber que aquele universo fictício não é tão diferente assim da nossa própria realidade.
Assim, Jogos Vorazes consegue entreter, divertir, ativar o sentimento da nostalgia pra quem viveu essa época e ainda, acima de tudo, fazer-nos refletir sobre como a população comum é apenas massa de manobra de quem reside no poder. É, esse texto tá ficando mais político do que eu imaginava
Jogos Vorazes: Em Chamas – Sufocando a revolução
Eu sempre achei Em Chamas o melhor livro, assim como o melhor filme. Ele pega tudo de bom que havia sido apresentado em Jogos Vorazes e melhora, adicionando vários outros elementos que deixam tudo com uma qualidade ainda maior. A produção é mais caprichada, as interpretações estão menos tímidas e a história é bem mais complexa do que antes, fugindo da fórmula simples e indo além do esperado.
Katniss e Peeta estão de volta aos Jogos Vorazes, em um ano de Massacre Quaternário, em “comemoração” aos 75 anos do evento mortífero. Ao contrário do primeiro filme, porém, a batalha na arena não é o foco e surge só a partir da segunda metade. Até lá, a trama dá muitas voltas, demonstrando como a artimanha que manteve os dois tributos do Distrito 12 vivos refletiu em um clima de revolta em toda a nação de Panem. Se dois jovens foram capazes de desafiar o sistema pra todo mundo ver, por que não tentar derrubar um governo que mantém seus cidadãos morrendo de fome por causa de uma guerra que acabou há quase um século?
Em Chamas é empolgante pra todos os públicos. Quer ação? Tem. Quer desenvolvimento de personagens? Tem também. Quer bons diálogos e discussões políticas mais aprofundadas? Sem problemas. Quer um enredo que não se atém ao simples e dá várias voltas, abordando temas diferentes ao longo da duração? Este é o seu dia de sorte!
Tecnicamente falando, o segundo capítulo da saga é o mais inspirado em termos de fotografia, roteiro, atuações e dosagem entre calmaria e agitação. Acho que até mesmo quem não é muito fã da franquia é capaz de apreciar o segundo filme. E, se eu falei que o público mais casual tem grandes chances de curtir, é certeza absoluta que os fãs dos livros vão gostar.
Em Chamas é uma das melhores adaptações literárias que eu já vi até hoje, colocando a trilogia (que acabou virando quadrilogia) em um patamar que poderia ocupar o vácuo deixado pela conclusão de Harry Potter. Foi a saga que mais chegou perto de alcançar esse nível de aceitação geral, mas ficou com tanta vontade de preencher tal espaço que acabou por perdê-lo, mas falaremos disso um pouco mais pra frente.
Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1 – O marketing da guerra
Eu nunca fui um grande fã do livro A Esperança, a começar pela tradução imprecisa do título. “O Tordo” faria muito mais sentido pelo contexto da história, mas tudo bem. Inspirados pelo sucesso advindo da divisão de As Relíquias da Morte em duas partes, valorizando assim o fechamento de Harry Potter, Jogos Vorazes resolveu seguir o mesmo exemplo, algo que a Saga Crepúsculo também tinha feito alguns anos antes com Amanhecer. A estratégia não deu muito certo, pois os dois últimos capítulos não são tão bem divididos em termos de formatação.
Quando eu vi a quadrilogia pela primeira vez, achei A Esperança: Parte 1 um filme pra lá de mediano. Depois dos frenéticos Jogos Vorazes e Em Chamas, Parte 1 pisa com os dois pés no freio e explora uma história muito mais intelectual, no sentido de que as principais discussões são feitas nos bastidores, e não em uma arena propriamente dita. Aqui, o filme tentou fazer algo que não é muito comum no cinema, sobretudo em obras mais “mainstream”. Em vez de abordar a guerra através das batalhas e combates, Parte 1 concentra suas atenções no marketing e na propaganda necessários pra incitar uma revolução.
Assistindo pela segunda vez, sabendo muito bem que o terceiro filme é totalmente diferente dos dois antecessores, eu cheguei à conclusão de que A Esperança: Parte 1 é bom pra caramba e extremamente subestimado. Pra ilustrar meu raciocínio, faço uma rápida comparação com Game of Thrones.
Grande parte dos meus momentos favoritos da série da HBO não eram as lutas épicas, apesar de algumas serem indiscutivelmente memoráveis (vide Casamento Vermelho e Batalha dos Bastardos). Várias de minhas partes prediletas eram as maquinações políticas e enfrentamentos ideológicos, como as conversas de Mindinho e Varys ou os discursos de Tyrion.
Pra quem não faz ideia do que eu tô falando, por não ter assistido a Game of Thrones, vou simplificar. A Esperança: Parte 1 se arrisca em fazer diferente. Eu sei que o livro é assim, mas seria muito mais fácil, comercialmente dizendo, enxugar essas partes e focar mais na ação. Não é isso que acontece, e pra mim é algo que abrilhanta o resultado.
Jogos Vorazes: A Esperança – O Final – O preço que se paga
Depois de reassistir A Esperança: Parte 1, eu conversei com um amigo meu e ele disse que foi um erro dividir o último filme em dois. Deveria ter sido só um, com duração de umas três horas. Eu discordei. Uma boa parte das pessoas argumenta que o penúltimo filme é muito parado e que falta ação, o que teoricamente teria de sobra no capítulo derradeiro. Assistindo A Esperança: O Final pela segunda vez, eu tendo a concordar que pode ter sido um erro a divisão, mas não sei se seria necessário um “epicão” de três horas de duração pra adaptar o último livro, bastava balancear melhor as coisas.
O problema da divisão é que poucos eventos narrativamente interessantes acontecem em O Final. Na Parte 1, temos diversos acontecimentos que fazem a história caminhar: a apresentação do Distrito 13, o treinamento da Katniss com a mídia, os bastidores dos conflitos entre distritos e Capital, o sequestro de Peeta, a relação entre Katniss e Gale, as visitas a locais destruídos pelos horrores da Capital e muito mais.
Em O Final, a trama é, essencialmente, uma caminhada através das ruas da Capital. Se formos pensar, é basicamente isso. É claro que temos algumas mortes no caminho e tal, mas a fórmula do filme é… sem graça. Isso sem falar nas sequências anticlimáticas antes da invasão da mansão de Snow. Se você vai dividir o último livro com expectativa de uma primeira parte de desenvolvimento e uma segunda de guerra, como em Harry Potter, era necessário que a guerra em questão fosse marcante. Isso passou longe de acontecer.
Inclusive, eu acho as mortes de A Esperança: O Final bastante arbitrárias e mal exploradas. Em Jogos Vorazes, todas as mortes têm um sentido, especialmente a da Rue. Na sequência, Em Chamas, acontece o mesmo, como o assassinato de Cinna. Eu sei que a razão pela qual o Finnick morreu foi pra inflamar ainda mais a sede por sangue de Katniss, e a tragédia envolvendo Prim foi pra heroína sentir que a Coin era tão ruim quanto o Snow. Porém, sinceramente, vocês sentiram os pesos dessas duas mortes, que deveriam ser as mais impactantes de toda a saga? Nem a mãe da Prim pareceu sentir direito.
Aliás, tá aí uma coisa que a franquia como um todo (ou tordo?) não conseguiu acertar: o relacionamento entre Katniss e Prim. A irmã mais nova da protagonista foi o motivo pelo qual ocorreu o ponto de partida de toda a história, mas ela fica pra escanteio durante quase todo o tempo. Ao longo do tempo, a gente vê a Katniss tendo mais preocupação com o Peeta do que com a própria Prim, o que acaba soando meio contraditório.
+ Veredito
Assistindo à saga inteira pela segunda vez, agora vendo todos os filmes em um menor espaço de tempo entre eles, posso atestar com tranquilidade que Jogos Vorazes é uma franquia que deveria receber mais reconhecimento. Em termos de adaptação, é praticamente perfeita. Como filmes, todos eles possuem qualidades. O meu favorito é Em Chamas, o ápice da franquia em todos os sentidos. A Esperança: Parte 1 virou meu xodó justamente pela subversão de conceitos, e Jogos Vorazes sempre terá um lugarzinho especial por ser onde tudo começou. A Esperança: O Final é o mais fraco dos quatro, mas possui bons arcos de fechamento e não chega a ser totalmente decepcionante. No resumo da ópera, é uma quadrilogia que vale a pena revisitar de vez em quando.
Nota: caso eu tenha usado algum termo desconhecido para vocês, meus queridos e queridas leitoras, não hesitem em acessar esse post aqui, ó: Glossário do Leleco
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Ei, você! Tudo joia? Pois é, eu também tô bem. E já que agora temos intimidade, comenta aí o que cê acha dos filmes. Opiniões são sempre bem-vindas, e é importante lembrar que nos comentários spoilers estão liberados. Se você não quiser vê-los, corre logo pra assistir e depois volte aqui, beleza?