• Robin Hoods da mídia
Você provavelmente já consumiu algum tipo de pirataria na vida. Não precisa mentir, eu sei que sim. Pode ter sido algo banal ou algo mais sério, mas é inevitável. Bom, a não ser que você seja rico. E é exatamente por isso que decidi escrever este texto. Pra deixar as coisas bem claras (e pra eu não ser preso pela Polícia Federal), este artigo não é uma apologia à pirataria. É mais uma reflexão sobre como a sociedade do consumo é hipócrita ao ponto de nos fazer sentir culpados por não conseguir arcar com os custos de determinados serviços, que poderiam ser mais democráticos.
Além do tal “jeitinho brasileiro”
Como eu sou brasileiro e não tenho nenhum tipo de conhecimento específico de como esse tema funciona em outros países, não tenho propriedade pra falar deles. Mas, aqui no nosso querido Brasil, a galera tende a justificar todos os tipos de ações moralmente questionáveis como “jeitinho brasileiro”. Será que é sempre assim? Não, eu não tô falando da pessoa que tenta levar vantagem em cima do outro no dia a dia. Não tô falando da pessoa que fura uma fila, ou burla regras para se safar de punições graves. O jeitinho brasileiro existe, é fato. O meu questionamento é se ele pode ser aplicado nesses casos de pirataria.
Pra entendermos como isso funciona, precisamos entender por que o brasileiro consome pirataria. Não é apenas porque ele quer tirar vantagem, é porque às vezes não consegue pagar. Vamos lá, vou trazer um exemplo rápido aqui dos cinemas da minha cidade. Recentemente, fui assistir a Top Gun: Maverick com meu pai. Nós dois pagamos inteira. Fomos em uma sala 2D convencional, em uma terça-feira à tarde. Cada um precisou desembolsar uma bagatela de R$30.
Se você vier aqui me falar que esse é um preço justo, eu vou rir da sua cara. Não, não é um preço justo. Talvez seja o preço justo de uma sala 3D, ou de uma sessão de estreia, ou de uma sala com mais recursos além de uma poltrona e uma tela. Agora, não é um preço justo pra um filme que já estava em cartaz há cerca de um mês, em um dia pouco visado e dentro de uma sala normal. E isso não se aplica somente aos cinemas. Na época do PlayStation 2, a pirataria era o que rolava. As crianças queriam se divertir com os videogames, mas não dava pra pagar constantemente um valor alto. Hoje em dia, os consoles estão mais ferrenhos quanto a isso e não permitem mais que jogos sejam pirateados. Tudo bem fazer isso, mas precisam mesmo cobrar R$ 200 cada título?
A questão não é moral, meus amigos. A questão é majoritariamente econômica. Quando garoto, eu não ia ao camelódromo comprar jogos de PS2 pra poder burlar o sistema e enganar o Governo. Eu comprava jogos pirateados porque simplesmente não tinha dinheiro pra arcar com os originais. O lazer no Brasil não é barato, e isso naquela época. Hoje, com as coisas cada vez mais caras, é ainda mais difícil pra alguém consumir alguns conteúdos sem precisar vender a alma pro Capitão Jack Sparrow.
A estratégia é envergonhar
A Lei contra a pirataria é uma das mais brandas que eu já vi. Pra se ter uma ideia, eu só fui entender que era proibido lá na metade da minha adolescência. Era só andar um pouco no centro da cidade pra se deparar com dezenas de produtos falsificados. Então, como é que aquilo podia ser crime? Eu não via por aí pessoas andando peladas na rua, como se atentado ao pudor não fosse passível de cadeia. Portanto, não entendia como a pirataria podia ser crime se todo mundo participava.
É quase impossível barrar totalmente a pirataria, ainda mais em meios digitais. Por conta disso, a estratégia da vez é deixar o consumidor envergonhado. Sim, é isso mesmo que você leu. De vez em quando, eu via uma ou outra propaganda desencorajando a pirataria, mas o pessoal vem buscando um outro caminho. Recentemente, vi um comercial no qual utilizavam crianças para condenar itens piratas. “Você diz que jogar lixo no chão é errado, não pode“, diz uma menina. “Comprar tênis falsificado não pode, é errado“, complementa um menino. “Mas aí vai lá e baixa série e filme do site ilegal“, conclui um outro garoto.
Essa é a nova estratégia. Você vê crianças apontando o que é errado e automaticamente se sente culpado por estar colocando aquilo em prática. É como se a sua mente dissesse: “nossa, até uma criança sabe que é errado e eu continuo fazendo“. A culpa desemboca na interrupção. Você pode até argumentar que é uma espécie de golpe baixo, mas não deixa de ser eficaz. Toda vez que eu vejo uma propaganda do tipo, porém, eu olho pra TV e pergunto, baixinho: “não é melhor democratizar o acesso do que demonizar o pobre?“.
O limite entre o imoral e o compreensível
Novamente, eu preciso ressaltar aqui que este texto NÃO é uma apologia à pirataria. O que eu quero dizer é o seguinte: quais esforços os governantes e empresas fazem pra que todas as parcelas de uma população tenham acesso a certos serviços? Não existe um “mais errado” e um “menos errado”, mas experimente colocar uma coisinha em perspectiva. Jeff Bezos, dono da Amazon, possui uma fortuna de US$ 186 bilhões e é a terceira pessoa mais rica do mundo. Você quer me dizer que, se uma pessoa que recebe um salário mínimo por mês deseja, sei lá, assistir ao novo episódio de The Boys, deveria ir pra prisão por baixar o capítulo em um site pirata?
Se todas as pessoas do mundo parassem de comprar produtos de empresas multimilionárias por uma semana, isso nem faria cócegas no bolso dos investidores. O “prejuízo” seria ridículo em comparação às suas fortunas. Felizmente, o acesso a conteúdos de filmes e séries vem ficando mais fácil com o advento das plataformas de streaming. Se uma pessoa tem condições de pagar por um serviço, nada mais justo do que fazê-lo. Contudo, eu lembro da época que, pra ver um jogo do meu time na televisão, eu precisava assinar um pacote, além de vinculá-lo a um serviço de TV a cabo. Isso significa que, todo mês, eu precisava gastar mais de R$ 200 pra ver um jogo por semana, e isso sem contar as quedas frequentes de sinal toda vez que ventava. Isso é justo? Por que é tão fácil condenar quem paga e não quem cobra?
A resposta pra isso é bem óbvia, e não preciso dizer com todas as letras pra você entender. Pela última vez, este texto não é um incentivo à pirataria, somente uma reflexão. Repare que todos esses meus argumentos tiveram relação apenas com pirataria de artigos de empresas multimilionárias. E, ainda assim, as coisas precisam se bancar. Também não é justo que acompanhemos lançamentos que demandaram muito dinheiro pra serem produzidos, sem dar sequer uma grana em troca. Na minha família, cada um banca uma coisa, e assim não fica pesado pra ninguém. Minha mãe paga Netflix, meu pai arca com a HBO Max e a Globoplay, minha namorada assina Disney+ e Amazon Prime Video, meu irmão e minha cunhada têm acesso ao Star+. No meu caso, fico com a assinatura anual da PS Plus. Assim, dá pra ser feliz.
Agora, se você pirateia um disco de música de um artista não consolidado, que está tentando fazer seu ganha-pão, aí não tem conversa. Infelizmente, você é um babaca que não valoriza a arte e, muito menos, o artista. Afinal de contas, todos temos que pagar as nossas contas. E nem todo mundo tem bilhões de dólares sobrando.
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Luiz Felipe Mendes
Criador do Pitacos do Leleco e crítico de maior autoridade no mundo do cinema