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ArtigosdoLeleco #07: Por que mortes de personagens queridos fortalecem uma história?

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• É preciso desapegar

Se tem uma coisa que me deixa desapontado no mundo do entretenimento audiovisual é quando um filme ou uma série não têm a coragem de matar personagens importantes. A partir do momento em que a gente percebe a chamada “armadura de roteiro”, o valor se perde porque sabemos que nada de trágico demais vai acontecer. Normalmente, protagonistas carregam esse fardo, pelo fato da história girar em torno deles. No entanto, é possível sim contornar essa armadilha. E saber se livrar de personagens queridos e marcantes pode ser o oposto de uma maldição, fortalecendo a trama em si.

 

Livrar-se de um personagem importante exige coragem (de todos os lados)

Antes de mais nada, vou falar o óbvio. Nem toda obra precisa matar personagens pra ser boa. Eu não vou assistir a uma pérola do Adam Sandler esperando que vá acontecer alguma tragédia. O problema surge a partir do momento em que uma série ou filme acende a fagulha da fatalidade. O que diabos isso quer dizer?

Imagine que o seu personagem favorito está em uma situação impossível de contornar. Sem citar nomes pra não ser acusado do crime inafiançável de spoiler, tem uma série que eu gosto muito que usou essa artimanha da maneira mais CACHORRA possível. Esse personagem em questão, que todo mundo gostava, caiu em cima de uma horda de zumbis. A câmera então focou em seu rosto, expressando muita dor, enquanto uma barriga era dilacerada logo abaixo. A nossa conclusão lógica era de que a barriga pertencia ao rosto, ou seja, o personagem estava morrendo. Uns três episódios depois, a série mostra que ele conseguiu escapar ao se esconder embaixo de uma caçamba de lixo, e a barriga estraçalhada era de outra pessoa, e não dele.

Conseguem perceber o problema? Essa série mostrou pra gente que era capaz de matar um personagem importante, mas utilizou essa estratégia apenas pra chamar a nossa atenção. Eu, particularmente, me senti enganado naquele momento. Quando descobri que ele tinha sobrevivido, o meu interesse pelo personagem diminuiu consideravelmente, pois ficou claro que, pelo menos naquela parte específica da trama, ele não iria morrer nem com reza braba.

Existem incontáveis exemplos dessa falta de coragem em séries famosas, como Stranger Things. Já repararam que a joia da Netflix só se livra de personagens recentemente introduzidos ou então com papéis secundários? Quando uma obra adota essa linha de pensamento, a gente para de se sentir apreensivo pelos nossos queridinhos, pois sabemos que eles estão protegidos pela maior força existente no mundo do entretenimento: o roteiro.

A minha cara quando eu vejo armaduras exageradas de roteiro

A morte precisa ter um sentido narrativo

Para matar personagens importantes, no entanto, a coragem não é o único requisito. Livrar-se de um personagem apenas pelo efeito do choque instantâneo, ou então por não saber o que fazer com o mesmo, fragiliza uma obra tanto quanto fingir que ele vai morrer e não conseguir seguir até o fim com a decisão.

Os que assistiram Game of Thrones sabem muito bem do que eu tô falando. Cada morte das primeiras temporadas levou a trama pra algum ponto específico; nenhuma foi por acaso. E até mesmo as mortes por acaso possuem um sentido, porque um texto bem escrito precisa disso pra sobreviver. Eu sei que a vida real é aleatória, e as pessoas morrem sem nenhum tipo de razão aparente. Contudo, uma obra de ficção é diferente. Cada pequena ação de um roteiro necessita de um significado. Se a série ou filme deu muito foco pra um banheiro, é porque o banheiro será palco de algo importante.

Deu pra entender? Nada é por acaso na ficção, ou pelo menos nada deveria ser. O bom diretor sabe exatamente como casar texto e imagem, por meio de passado, presente e futuro. Em The Last of Us, por exemplo, a câmera direciona suas atenções frequentemente para o relógio do Joel em momentos-chave da trama, seja para simbolizar dor, superação ou amor. Em Breaking Bad, até mesmo as cores das roupas dos personagens escondem um significado. Na minha visão, a linguagem cinematográfica e televisiva, quando bem feita, transmite muito mais do que os nossos olhos podem ver ao primeiro relance.

Que saudades dessa série…

Já ouviram falar que a gente só valoriza quando perde? Então…

Não chega a ser uma regra, mas já repararam que a gente costuma lembrar muito mais de personagens que morreram do que aqueles que sobreviveram, quando uma série ou um filme acaba? Muitas vezes, a gente só valoriza quando perde. Em diversas situações, um personagem se torna símbolo de uma obra exatamente porque ele morreu. Se você pedir pra um fã de Harry Potter fazer um Top 5 dos personagens favoritos da saga, a lista terá pelo menos uns três que morreram em algum ponto da história.

O luto intensifica o sentimento. Se isso acontece na vida real, por que não na ficção? A “saudade” de um personagem faz a gente lembrar dele com carinho, ainda mais quando assistimos de novo e nos lembramos de quando ainda estava vivo no enredo. Portanto, a morte é provavelmente o elemento narrativo mais importante de um drama, contanto que o responsável pela condução saiba como utilizá-la.

Não tem jeito melhor de terminar esse pitaco do que com corvos em destaque

 

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Luiz Felipe Mendes
Criador do Pitacos do Leleco e crítico de maior autoridade no mundo do cinema

Publicado por Luiz Felipe Mendes

Fundador do blog Pitacos do Leleco e referência internacional no mundo do entretenimento (com alguns poucos exageros, é claro).