• A arte transcende
Harry Potter está novamente em alta no mundo da arte. Nesta semana, ocorreu o lançamento de Os Segredos de Dumbledore, o terceiro filme da saga Animais Fantásticos. No fim do ano, Hogwarts Legacy ganhará espaço entre os jogos de videogame. E o que isso tudo significa? Uma velha questão voltou a entrar em pauta. Pra quem não sabe, a autora J.K. Rowling já foi constantemente transfóbica e não demonstra sinais de que vai mudar. Com isso, muita gente perdeu o apreço pelo mundo mágico e pensa até em boicotar os novos lançamentos. Afinal de contas, é possível separar a arte do artista?
A trajetória de uma obra de arte
Antes de começar de vez isto aqui, um pequeno aviso. Este texto é simplesmente a minha opinião. Se você discorda, tudo bem! Estou longe de me achar o dono da verdade, então o que eu colocar aqui é apenas uma visão pessoal e sem nenhum compromisso em ser absoluta. Combinado? Então vamos lá.
Eu sempre fui fã de Harry Potter. Meu irmão mais novo talvez tenha sido mais viciado durante a infância, fazendo parte de grupos e tendo varinhas e outros itens da saga. Mesmo assim, eu sempre gostei. Sem zoeira, eu já li cada um dos livros pelo menos umas cinco vezes. Alguns, como o terceiro, mais ainda. Os filmes, perdi as contas de quantas vezes assisti. No videogame, zerei vários jogos. Quando foi lançado o Wizards Unite, um jogo de celular semelhante ao Pokémon GO, passei meses me aventurando por ele. No meu braço direito, eu tatuei os passos do Mapa do Maroto. Sem dúvida alguma, como vocês podem perceber, Harry Potter tem um grande significado na minha vida.
Para uma obra de arte ganhar notoriedade, a primeira coisa que deve acontecer é ela ultrapassar a barreira do artista. A partir do momento em que um universo se torna mais importante do que o responsável por criá-lo, essa barreira foi quebrada. Vamos pegar o Tolkien, por exemplo. O cara é gigantesco no mundo da fantasia, um dos escritores mais respeitados de todos os tempos. No entanto, o legado de Senhor dos Anéis consegue ser maior do que o próprio Tolkien. Mesmo daqui a 100 anos, eu tenho certeza de que a Terra-média continuará existindo no imaginário popular.
Com Harry Potter, a situação é a mesma. Quando eu penso no Universo da Magia, eu não me lembro da J.K. Rowling. Eu me lembro das horcruxes, do Chapéu Seletor, do castelo de Hogwarts, dos meus personagens favoritos. Por mais estranho que isso possa parecer, não importa quem escreveu Harry Potter. Aqui temos o caso de uma história que não precisa mais da pessoa que a concebeu. Assim como um filho anda com as próprias pernas após ser criado pelos pais, a arte ganha vida após conquistar o público.
Por esses motivos, a minha admiração por Harry Potter jamais será afetada, não importa o que acontecer. Não importa se a J.K. Rowling afirmar que o Lupin era supremacista, ou que o Rony ficou bêbado e atropelou alguém, ou que a Hermione odeia pessoas trans. O que foi escrito nos sete livros originais não pode mais ser alterado. O que está escrito, está escrito. Ninguém pode mudar o curso daquela história, nem mesmo o autor da obra. Alguém já conseguiu alterar seu próprio passado na vida real? Pois a lógica é a mesma com a ficção.
Mas qual é a solução? Simplesmente ignorar o artista?
De fato, aqui a discussão fica um pouco mais complicada. Tudo bem sustentar a admiração pela arte, mas seria ético continuar dando lucro para o artista? Nessa questão específica da J.K. Rowling, eu enxergo de duas maneiras. Em primeiro lugar, acho essencial que as pessoas expressem seu repúdio em relação às declarações dela. Não apenas as pessoas comuns, mas influenciadores e empresas. Sou a favor de deixá-la cair no esquecimento, não dar espaço pra ela promover entrevistas, declarações ou coisas do tipo.
Em segundo lugar, uma visão um pouco mais prática e realista de como o mundo funciona. Se todo mundo boicotar os produtos de Harry Potter, isso vai realmente afetar a J.K. Rowling? Sinceramente, se todo mundo nunca mais assistir a um filme, comprar um livro, ir a um evento ou comprar alguma coisa daquele universo, isso vai deixar a J.K. Rowling mais pobre? A resposta é não. Aquela mulher já tem dinheiro pra umas três gerações. Mesmo se parar de faturar, nunca mais deixará de ser rica. Por isso, boicotar o mundo de Harry Potter seria pior pra mim do que pra ela. Eu estaria deixando de aproveitar algo que eu gosto e isso nem faria cócegas nos bolsos dela. Se a J.K. Rowling estivesse no começo da carreira, aí sim acho que caberia uma maior discussão. Não é o caso.
Leleco passador de pano, aff
Sim, eu sei que isso tudo pode ter soado como uma grandíssima passada de pano. Garanto que não é o caso. Reitero que não possuo nenhum respeito pela J.K. Rowling. Eu não gostaria de ter um autógrafo dela, ou tirar uma foto com ela. Não concordo com a sua visão de mundo. Mas e aí? Vou citar um outro exemplo. A atuação de Kevin Spacey como Frank Underwood em House of Cards é uma das melhores que já vi em séries. Eu gostava pra caramba do personagem. Quando estourou aquele escândalo em 2017 e Spacey foi demitido da série, eu concordei totalmente com a atitude. A última temporada ficou horrível sem ele, mas a Netflix fez a coisa certa na época, mesmo sendo por pressão.
Eu não sei se tem algum jeito de retirar os direitos da J.K. Rowling sobre a própria obra. Não tenho conhecimento suficiente de Direito pra responder essa pergunta. Este é apenas o relato de um fã qualquer de Harry Potter. Um fã que ama Dumbledore, Luna, Sirius e Snape, mas que odeia a J.K. Rowling. Isso me torna contraditório? Não sei. Eu só sei que não consigo mudar o meu sentimento em relação à Harry Potter e ao significado da saga pra minha vida. Quero que a autora se exploda, mas Hogwarts sempre terá um espaço no meu coração.
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Luiz Felipe Mendes
Criador do Pitacos do Leleco e crítico de maior autoridade no mundo do cinema